Wednesday, February 28, 2007

VI

Os primeiros raios de sol da manhã passavam pelas frestas da janela e iluminavam o assoalho da casa.
Abriu os olhos e a luz forte parecia ferir-lhe as vistas. Levantou-se e foi logo pegar o cavalo.
Percorreu à trote a cidade durante a manhã inteira. Nada. Nem uma viva alma ainda. O tédio começava a lhe ocupar a mente. Até as velhinhas estavam começando a fazer falta. Começou a vasculhar todas as casas, em busca de distração.
Avesso às idéias que agora lhe percorriam, ele sentia falta das pessoas dali. Ou então, apenas se sentia só. Bem mais provável essa última, pois viverá quase a vida toda só. Sem família.
Com o corpo dolorido, apeou do animal e caminhou lhe puxando as rédeas. A noite já cobrirá o céu, e os grilos cantarolavam ocultos na grama.
Chegou até sua nova casa, amarrou o animal nos fundos e foi deitar. Mas estava inquieto. Por dentro, ansiava por algo. Então se levantou, e tomou o único rumo que lhe causava a insônia: os muros.
Com um lampião à mão, caminhou ao lado daquelas gigantes muralhas, percorreu uma breve extensão, e foi aos portões.
Caminhando lentamente até os portões, não acreditou em seus olhos. Aquele pesado portão de ferro estava entreaberto.
Ficou boquiaberto e sem reação por alguns instantes. Um calafrio lhe subiu dos pés à cabeça. Seu corpo inteiro tremia, sua testa suava e seus olhos se arregalaram.
Após despertar do transe momentâneo, deu alguns passos, não mais que três ou quatro, em direção ao portão.
Tocou-lhe com a ponta dos dedos, como se o acariciasse.
Foi então que começou a ouvir um leve murmúrio. Assustou-se. Girou em torno de si mesmo, erguendo o lampião. Mas era uma luz fraca demais para enxergar algo à mais que alguns metros de distância. Chamou por alguém que ali estivesse, mas não obteve resposta. O vento parecia estar soprando mais frio.
Então se virou novamente ao portão, ainda aberto. Dando alguns passos cautelosos e com as pernas trêmulas, ele o atravessou, adentrando finalmente àquela fortaleza.

Monday, February 26, 2007

V

Muito se assustavam com aqueles muros. Com medo de assombrações, maldições e raramente ladrões. Mas até mesmo os ladrões se sentiam desconfortáveis com o clima macabro que se criava ali.

A casa era mais que um sonho para ele. Jamais se virá morando num lugar tão luxuoso. Pertencia ao criador de porcos, que também era o prefeito do vilarejo.
Com as dispensas cheias, não precisou mais voltar à taverna para abastecer os mantimentos.

Cinco dias já haviam se completado, sem que visse qualquer pessoa por ali.
Numa manha, estava caminhando pelos pastos, fatigado pela andança e pelo sol deitou na relva. Fechou os olhos, e pensou e como seria bom ter ali um cavalo.Ele adorava cavalos. Para ele, não existia nada mais lindo que esses animais.
Cavalgará muito durante sua infância com o pai. Mas este havia morrido cedo, duma epidemia, em outro vilarejo, numa cidade distante.Então o jovem teve que começar desde cedo a trabalhar ajudando no sustendo da casa, junto com a mãe. Até que essa também se foi, numa noite fria.
Se via sozinho no mundo, mas não triste por estar sozinho. Triste pela vida que levava.

Perdido em pensamentos lembrou da sensação agradável de cavalgar. Adorava cavalgar. Mas já fazia muitos anos que não montava num animal desses para se deleitar com o galope e a brisa lhe batendo no rosto.

Então ele abriu os olhos. A cabeça caiu para o lado e de repente ele gritou e se pos em pé. Tropeçou alguns passos para trás, ofegante. O coração batia acelerado.
Não podia ser. Era impossível!
Como num passe de mágica, um cavalo surgirá.Marrom da cor da terra, crina negra, longa e escorrida e patas largas. Pastando a relva.
Ele se aproximou do animal, e lhe tocou com receio. Até se assegurar que era apenas um cavalo normal.
Então montou o animal, e cavalgou pelo resto do dia.
Ao cair da tarde, voltou para casa.
Após dar de comer ao animal, banhou-se e deitou. Nessa noite, sonhou com os dias em que galopava com o pai e os olhos se encharcaram de saudades.

Saturday, February 24, 2007

IV

Não diferente do dia anterior, fora acordado pelo sol batendo em seu rosto.
Abriu uma fresta da janela e não viu ninguém nas ruas. Absolutamente ninguém. Nenhum barulho. Despreocupado, fechou a janela e voltou a dormir.
Despertou algumas horas depois, num pulo. Assustado por um barulho.
Olhou para o lado e havia sido ele mesmo, quem derrubará com o braço, do banco ao lado da cama, a flauta.

Resolveu sair da cama. Era tarde, e o sol estava numa temperatura agradável. Tirou a camisa pesada. Há muito gostaria de andar com o peito desnudo pelas ruas. Aquele calor sempre o atormentará. Era feliz pelo verão ser curto.
Comeu muito bem após sair da cama. Deitou o franzino corpo na varanda de sua casa e ficou ali por horas. Viu o sol se esconder atrás das montanhas e a lua e as estrelas começaram a brilhar no céu escuro.

Foi até o quarto só para pegar sua flauta. Avistou uma garrafa de vinho e a apanhou também. Tocou e bebeu noite adentro. Até que já não tinha mais tanta coordenação para tocar. E então adormeceu.

Já era o terceiro dia desde o sumiço dum vilarejo inteiro.
Seus dias nunca foram tão divertidos e tranqüilos. Nunca se sentiu tão leve.
Comida não faltava na casa dos outros. E bebida tão pouco. A taverna era sua dispensa.
As velhas senhoras enrugadas não estavam mais ali para cochichar entre si quando ele passava. O velho carroção que levava lenha não o acordava mais.

E ele adorava caminhar por essa cidade tranqüila. Nem mesmo visitantes haviam mais ali aparecido. A cidade não tinha nenhuma razão especial para ser visitada, mas volta e meia alguns comerciantes passavam por ali. Trazendo tecidos rústicos e raramente algumas iguarias, como louças, pequenas jóias e comidas exóticas.


Voltando de uma de suas caminhadas reparou como sua casa estava maltratada. Parou diante de sua morada e vislumbrou um lar melhor para ele. Agora que não havia ninguém para apontar-lhe o dedo e acusá-lo de pecado da luxúria.
No dia seguinte saiu de casa com suas roupas e alguns pertences enrolados num lençol velho. Encontrou uma confortável e simpática casa, de ambiente agradável, e ali mesmo se acomodou.
A choupana dava de frente com os portões. É claro que a mudança fora uma desculpa para se aproximar do portão.

Tuesday, February 20, 2007

III


O sol batia no seu rosto branco e o forçou a abrir os olhos. Olhou pela janela e já era tarde. Passava do meio-dia. O que haveria acontecido com o carroceiro que passava todas as manhas em frente a sua casa, acordando-o com o barulho das lenhas batendo entre si?

Arrumou-se rápido, sem nem mesmo parar para comer algo. Saiu de casa as pressas. Abaixou a cabeça pela vergonha de ter dormido até tarde. Não queria ter que encarar as pessoas. Era apenas um vilarejo, desses em que todos se conhecem e cuidam da vida uns dos outros. Mas estava feliz no fundo, pelo merecido descanso. Ele já não lembrava mais da ultima vez em que havia feito isso. E trabalhava de sol a sol todos os dias. Não tinha motivo para se envergonhar. E isso lhe ecoou pela mente. Então ergueu a cabeça.
E não viu nada.

Nada além do mesmo cenário de sempre. Os casebres pobres, as cercas tortas e mal pregadas, as estradas de terra marcadas pelas rodas das carroças...
O silêncio só fora quebrado pelo barulho duma janela aberta, batendo ao balanço do vento. Passou por ela tentando olhar o seu interior, mas estava escuro demais.

Parou de caminhar e pôs seus olhos a correr ao seu redor. Nem pessoas. Nem animais. A cidade estava deserta. Deu alguns passos perdidos, rumando junto ao vento, como se empurrado por ele.
Chamou por alguém, mas só o vento lhe respondia.
Quando se deu conta estava perto do muro. Há poucos passos daquele portão que era, aparentemente, a única entrada para aquele lugar protegido por muralhas enormes.

Caminhou até ele. Parou a sua frente e o fitou com os olhos. Olhou para os lados, ainda perplexo e incrédulo com o sumiço de todos. E voltou a fixar os olhos no portão.
Dessa vez havia algo diferente nele. Ele parecia estar mais leve. Ou pelo menos era essa a sensação que ele agora transmitia.
Então o rapaz o tocou. Espalmou-o com as duas mãos e fez força para empurrá-lo. Fez muita força. Tentou várias vezes. Até desistir. Estava arfando. O portão continuava pesado como sempre. Não havia deixado de ser um enorme bloco de ferro bruto e gelado.

Até então ninguém sabia como esses muros haviam sido erguidos. Não se conhecia o proprietário. E também não havia histórias sobre como ele fora erguido. Mas era notável sua idade avançada, devido à cor escurecida das pedras, ao seu desgaste e ao manto de vegetais.

O sol começava a baixar. Resolveu ir para casa. Com passos preguiçosos e expressão despreocupada.
Talvez tudo fosse um sonho. E daqui a pouco ele acordaria.
Chegou em casa. Comeu e bebeu. Leu algumas páginas dum livro velho, quase esquecido em cima da mesa. E tocou sua flauta. Então, adormeceu.

Thursday, February 15, 2007

II

Ele caminhou, caminhou e caminhou. Parecia não ter mais fim. E não havia chego a dobrar em nenhuma aresta ainda. Apertou o passo, mais ainda mantendo a percepção ao extremo, para que nada lhe passasse pelos olhos. Finalmente dobrou uma das esquinas. Ali por perto não havia nada além duma planície escura. O silencio era total, a não ser pelo farfalhar das folhas secas aos seus pés. A terra era seca e o vento que ali soprava era frio e mórbido. Nem arbustos rudes cresceriam naquela terra.

Continuou a andar. Prestando atenção nos muros. Nada de diferente havia sido avistado pelos seus olhos, mas a curiosidade não diminuirá por isso.

Havia chego finalmente à última parede. Não viu nada além de muros sujos de musgo e coberto pela folhagem.
Assim que acabasse iria estar no caminho de casa novamente. Seus pés já doíam. Suas pernas estavam cansadas. Achou que não valia a pena completar a volta, amanha passaria por ali mesmo.
Estava um tanto quanto decepcionado, pois não havia encontrado nada que o encantasse.
Foi direito pra casa. Precisava dormir. Essa noite seria mais curta para ele.

Thursday, February 08, 2007

I

Toda noite ele passava por ali. Já estava escuro demais para poder enxergar mais detalhes. E só em noites de lua cheia o que havia além dos altos muros podia ser mais bem visto.
Bastava subir em alguma árvore ao redor e já podia se ver algo do lado de dentro. Mesmo assim, não se conseguia enxergar muito.
Pela manha ele jamais subiria. Tinha medo de que alguém gritasse à sua direção. Não queria ser conhecido como “herege” ou “enviado do demônio”...
Pois é assim que seria tratado se tentasse espiar o que aquelas altas paredes guardavam.
Aqueles muros não eram bem vistos. E na verdade, ninguém sabia o porque. Não se tinha conhecimento de ninguém naquela localidade que conhecesse a origem dessas paredes de pedra.

E sua curiosidade seria interpretada de maneira errada. Ele não seria muito bem visto pelos demais cidadãos, que fingiam não haver muro algum ali, mas que também sabiam perfeitamente o quanto deveriam se manter longe.

Subir em árvores sempre foi uma brincadeira para crianças. Não para homens barbados. E seria pior ainda subir em árvores para espiar o que se abrigava além dos muros.

Mas ele não era o único que queria ver o que aqueles muros guardavam. Mas era o único a tomar alguma iniciativa para descobrir. Mesmo sendo uma atitude tão tímida.

Havia um portão. Grande. Enorme. Mais de duas vezes a sua altura. E provavelmente estaria trancado. Ninguém nunca tentou afastá-lo, mas portões assim sempre ficam trancados. E com muros tão altos, do que adiantaria um portão destrancado?Talvez com uma enorme tranca do lado de dentro. E mesmo se estivesse aberto ele iria precisar de uns dez cavalos para abri-lo.

Os garotos espiavam através do buraco da fechadura. Em grupos, que sempre eram espantados pelas senhoras ranzinzas que moravam perto.
Ele também já espiara, mas durante a noite, quando não era possível enxergar nada além da escuridão.
Um dia ele havia espiado durante o dia, escondindo entre os garotos. Via-se uma árvore seca e retorcida. Com algumas folhas marrons, já caindo. As folhas que jaziam em torno cobriam quase todo o chão de pedras.
Então as senhoras espantaram as crianças novamente, e ele saiu em disparada.

Todas as noites ele passava por ali. Era o caminho que tinha de ser feito para que pudesse ir trabalhar. E sua curiosidade se aguçava cada vez mais. Assim como o olfato se aguça quando estamos com fome.
Isso desde que ele se lembra de ter visto aquilo pela primeira vez. E isso desde que subia em árvores na calada da noite.



Os muros altos, com pedras acinzentadas já haviam sido envolvidos pelas plantas trepadeiras e pelo musgo.

Não era a primeira vez que ele caminhava paralelo aos muros. Mas nunca chegou a completar uma volta. Os muros eram extensos demais. Tão longos que ele não conseguia enxergar o final deles.
Ele precisava ir para casa, descansar e começar um novo dia assim que o sol se erguesse.

Era noite de lua cheia. E ao invés de subir em árvores para tentar adivinhar o que havia dentro daqueles muros, ele resolveu que iria percorrer toda a extensão. Era melhor que fizesse isso durante a noite, quando ninguém o veria. Além das senhoras ranzinzas, as pessoas da cidade não viam com bons olhos quem se interessasse por aquele lugar. Além das trepadeiras, muitas lendas haviam se agarrado àqueles muros.

Além do jardim


"Um homem é tudo aquilo o que ele sonha ser."

Do filme O Guerreiro da Paz.